O direito autoral, como outros campos do direito, foi imensamente impactado pelas novidades trazidas pela internet com relação às formas de criação, consumo e disponibilização das obras intelectuais. Parece óbvio, portanto, que a nossa Lei de Direitos Autorais (nº 9.610, de 1998), estruturada na lei anterior de 1973, necessite ser modernizada, mas em que termos?
A Secretaria de Direitos Autorais e Propriedade Intelectual da Secretaria Especial da Cultura, Ministério da Cidadania, abriu consulta pública em 2019 para ouvir da sociedade civil sobre a necessidade de alteração da atual legislação. Entre as propostas sugeridas para debate, o que ganhou maior destaque foi o tema direitos autorais e internet seguido por responsabilidades dos provedores de aplicações da internet: infrações aos direitos autorais.
Também foram abordados o direito de remuneração equitativa no setor audiovisual, a transferência dos direitos do autor e permissões legais de uso para museus, bibliotecas, arquivos e instituições de ensino e de pesquisa
Outras discussões são trazidas à luz pelo meio acadêmico, como a revisão de contratos em razão da hipossuficiência dos autores, principalmente em início de carreira. Sobre esse quesito, ainda que a lei atual determine a interpretação desses contratos de maneira restritiva, cresce a tendência de posicionar o autor como hipossuficiente, emprestando o conceito do direito do consumidor.
Deparamo-nos também com o questionamento sobre a titularidade de obras intelectuais criadas por inteligência artificial em um cenário em que a lei atual só permite ser titular de direitos autorais a pessoa física.
A Ancine, em 2020, submeteu à consulta pública minuta de instrução normativa que cria mecanismo de processamento de denúncias de violações a direitos autorais via sites e/ou provedores de aplicativos. Referida minuta preocupa-se em conceituar o site ou aplicativo da internet que pratica violação ao direito autoral de obras audiovisuais, baseando-se na quantidade disponibilizada sem autorização dos titulares.
É curioso pensar que a internet foi criada em um contexto quase anárquico, literalmente como um “lugar” “sem espaço” para restrições ou regulações. As legislações que vieram posteriormente, de certo modo, carregaram essa convicção.
O Marco Civil da Internet, de 2014, com o intuito de preservar a neutralidade da rede, estabelece que os provedores de aplicações de internet somente serão responsabilizados por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomarem providências para torná-lo indisponível.
Ademais, sua aplicação às infrações a direitos de autor ou a direitos conexos (direitos de intérpretes, produtores de fonograma e empresas de radiodifusão) depende de previsão legal específica, devendo ainda respeitar a liberdade de expressão e demais garantias fundamentais. Tal previsão não existe até hoje.
Ao se depararem com a necessidade de aplicação da Lei de Direitos Autorais, nossos tribunais o fazem de fora da internet para dentro da internet. O Supremo Tribunal Federal (STF), em 2017, pacificou entendimento no sentido de ser devida a remuneração por direito autoral pela exibição de conteúdos via streaming apoiando-se no conceito de execução pública trazido pela lei de 1998, caracterizado pela disponibilização da obra com potencial de alcance a número indeterminado de pessoas a qualquer tempo.
Não obstante o honroso esforço dos operadores do direito, esse fato demonstra o quanto a legislação atual é escassa em prever soluções para conflitos tão comuns hoje em dia, mas que não existiam à época da criação e promulgação da lei.
Relevante mencionar que a Lei de Direitos Autorais prioriza três sujeitos, quais sejam, o criador da obra intelectual, quem a explora comercialmente e por fim quem a consome, dando enfoque maior aos dois primeiros. No entanto, é evidente a necessidade de se conceder mais importância à figura daquele último.
As primeiras plataformas de compartilhamento de arquivos evidenciaram que o fluxo de divulgação das obras intelectuais foi alterado – o Napster chegou a atingir tráfego diário estimado em 20 milhões de músicas. O que antes era disponibilizado pelos editores, gravadoras ou pelos próprios autores, passou a ser feito pelos usuários, revelando seu protagonismo.
Para uma reforma justa e suficiente da atual Lei de Direitos Autorais, há de se buscar um fino ajuste entre a proteção do direito autoral e a disseminação do conhecimento, o combate à pirataria e a proteção dos direitos fundamentais dos usuários da internet.
Para tanto, é imprescindível discutir os conceitos basilares da proteção dos direitos de autor. Ainda mais porque os mecanismos outrora criados para repressão da veiculação não autorizada de conteúdo pela internet há algum tempo já não são tão efetivos, pois muito agressivos para a democratização do conhecimento. Como se sabe, o repertório cultural é berço e estímulo à criação intelectual.
É com esse ânimo que se espera que sejam pautadas as iniciativas de modernização da legislação de direito autoral no Brasil e no mundo.
Por: Juliana Cristina Ramos Costa é advogada da área de propriedade intelectual e contratos do escritório Weiss Advocacia.
Fonte: https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2021/04/12/direito-autoral-e-ambiente-digital.ghtml