Em maio deste ano, a 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo confirmou a nomeação de um agente de monitoramento financeiro, também conhecido como watchdog, para acompanhar as atividades da Viação Itapemirim, com o objetivo de proteger os interesses dos credores e o cumprimento efetivo do plano de recuperação judicial da empresa.
A Itapemirim teve sua falência decretada pela 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo no último dia 21, atendendo a um pedido feito pelo Ministério Público em janeiro deste ano. O MP baseou o pedido nos incisos IV e VI do artigo 73 da Lei 11.101/05: o inciso VI diz que o juiz deve decretar a falência da recuperanda “quando identificado o esvaziamento patrimonial da devedora que implique liquidação substancial da empresa, em prejuízo de credores não sujeitos à recuperação judicial, inclusive as Fazendas Públicas”; já o inciso IV prevê a quebra da empresa em recuperação judicial caso haja “descumprimento de qualquer obrigação assumida no plano de recuperação”.
Além de ter deixado muitos clientes da Itapemirim Linhas Aéreas a ver navios — já que aviões eles não viram mesmo —, a recuperação da empresa chamou a atenção pela participação do watchdog no processo. E uma participação tardia, pois o profissional só teve a nomeação confirmada seis anos depois de a Itapemirim ter entrado em RJ. O que leva a uma pergunta: a situação teria sido diferente se ele tivesse entrado em ação mais cedo?
“Talvez as coisas acontecessem de outra forma se desde o começo a presença de um watchdog tivesse sido prevista”, opina Cypriano Camargo, CEO da CCC Monitoramento, empresa pioneira do setor no país. Segundo ele, a nomeação do watchdog para a recuperação da Itapemirim não seguiu o padrão, já que o profissional costuma ser indicado no momento da aprovação do plano de RJ.
Regular ou não regular?
A nova Lei de Recuperação Judicial e Falências não prevê a figura do watchdog. No entanto, a demanda por esses profissionais tem crescido muito, e por isso a revista eletrônica Consultor Jurídico questionou especialistas no tema sobre a necessidade de regulação da atividade de agente de monitoramento financeiro.
“A presença do watchdog não é obrigatória em um processo de recuperação judicial. Ela é recomendada. Esse profissional ajuda a dar uma credibilidade maior aos casos em que houver dúvidas sobre a viabilidade do plano pelos credores. Portanto, eu não acredito que seja necessária a regulação dessa atividade”, diz Camargo.
Pedro Almeida, especialista em Direito Societário e Recuperação Judicial no escritório GVM Advogados, pensa diferente. “A regulação seria benéfica por definir as competências desses profissionais. Na prática, pode haver um conflito entre as diligências que o watchdog precisa adotar com as que lhe são facultadas. A Lei de Recuperação e Falências não fala nada, por exemplo, da nomeação de um watchdog por iniciativa do juiz, e isso pode gerar um cenário em que não há concordância entre a empresa e os demais agentes processuais.”
Head de Contencioso Empresarial Cível, Recuperação de Empresas e Arbitragem do Donelli Abreu Sodré e Nicolai Advogados, Renato Leopoldo e Silva também defende a necessidade de regulação do watchdog. “Encaro como um profissional que é mais técnico para ter um olhar sobre o dia a dia da empresa. Ele é um novo player no processo e, como todos os outros, deve ser regulado.”
Fiscal do juiz
Ligia Ribeiro Sacardo, sócia da área de Recuperação de Crédito da banca Rayes e Fagundes Advogados Associados, defende a atuação do watchdog quando for preciso fiscalizar de perto a RJ para evitar o cometimento de fraudes pelos administradores da empresa, sem, contudo, retirá-los da administração. Isso porque o profissional deve se limitar a fazer a fiscalização e relatar os acontecimentos ao juiz, não assumindo qualquer ato de gestão.
“A utilização do watchdog, quando bem empregada, pode auxiliar na condução dos processos de recuperação judicial, trazendo transparência para casos que, em razão das suspeitas de fraude, esvaziamento de patrimônio etc., acabam se estendendo por anos e se afastando do objetivo principal de preservar a atividade produtiva, maximizando o ativo para atendimento, dentro das regras do plano aprovado, das pretensões dos credores.”
Por sua vez, Ricardo Martiniano de Azevedo, especialista em Direito Empresarial da Weiss Advocacia, acredita que o trabalho de um watchdog minimiza o risco de desvios de recursos e atos prejudiciais à empresa. “Acredito que tal figura seja benéfica a qualquer processo de recuperação judicial, em especial àqueles de grandes empresas, que possuem uma movimentação financeira vultosa, o que caracterizaria um cenário mais propício para eventuais desvios.”
Pedro Almeida destaca que a atuação do watchdog pode evitar um dos principais perigos das recuperações judiciais, que é o risco de o credor ficar sabendo tarde demais da inviabilidade da empresa. “Muitas vezes vemos que processos de recuperação são usados apenas para adiar a falência das empresas. Com isso, muitos bens se perdem no meio do caminho e o recebimento do crédito é protelado.”
Função em crescimento
O primeiro processo de recuperação judicial do Brasil a contar com a figura do watchdog foi o da PDG Realty. Nomeado em dezembro de 2017, o profissional tinha a responsabilidade de monitorar um grupo com mais de 800 empresas (com aproximadamente 500 delas sujeitas a recuperação judicial), aproximadamente 2,4 mil contas correntes e cerca de 30 mil transações por mês. A empresa conseguiu sobreviver a um processo que envolvia um passivo de R$ 5,3 bilhões, com mais de 22 mil credores, e agora busca expandir suas atividades.
“Na época, era a maior recuperação judicial do Brasil, e um dos motivos principais para o plano de recuperação ter sido aprovado foi o fato de ter um agente independente para monitorar o caixa da empresa”, afirma Camargo.
A recuperação da Novonor — antiga Obebrecht — é outro caso que confirma a tendência de alta na utilização do watchdog. O plano engloba a restruturação de passivos superiores a R$ 60 bilhões.
O mesmo ocorre com a recuperação da Atvos (braço sucroalcoleiro do grupo Novonor), aprovada em agosto de 2020, que também conta com o trabalho de um agente de monitoramento financeiro, assim como o processo de RJ do Estaleiro Atlântico Sul. A empresa, com endividamento superior a R$ 2,3 bilhões e um total de 405 credores, teve o seu plano de recuperação homologado em maio de 2021, já prevendo a presença da figura de um watchdog.
Revista Consultor Jurídico, 15 de outubro de 2022, 8h49
Por: Rafa Santos é repórter da revista Consultor Jurídico.