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Ambiente digital: agente transformador do Direito Autoral?

Ao passo que o mundo e as relações humanas vão passando por grandes transformações, vem à superfície o debate sobre a necessidade ou não de determinado sistema normativo ser ajustado para atendimento a contento do novo cenário.  

O Direito Autoral, como tantos outros campos do Direito, foi imensamente impactado pelos avanços trazidos pela internet com relação às diversas formas de criação, consumo e disponibilização das obras intelectuais.    

Parece óbvio, portanto, que a nossa legislação de Direito Autoral, Lei nº 9.610 de 1998, necessite ser modernizada. A grande indagação nos parece ser o que considerar para essa atualização.    

Em muitos países, como Estados Unidos, Canadá e África do Sul, além da União Europeia, ocorrem movimentos no sentido de adaptar a legislação de proteção ao Direito Autoral à luz da internet. No Brasil, o tema também é debatido.  

A nossa lei, estruturada na anterior, nº 5.988, de 1973, sofreu duas alterações sem consequências significativas, a primeira em 2009 e a outra em 2013, tendo esta última alterado pontos específicos relacionadas à gestão coletiva de direitos autorais.   

Mais recentemente, de junho a setembro de 2019, a Secretaria de Direitos Autorais e Propriedade Intelectual da Secretaria Especial da Cultura, pertencente ao Ministério da Cidadania, abriu consulta pública para ouvir da sociedade civil sobre a necessidade de alteração da Lei de Direitos Autorais e, precipuamente, em que termos. 

Entre os temas sugeridos para objeto da reforma da legislação — entre eles direito de remuneração equitativa no setor audiovisual, transferência dos direitos do autor e permissões legais de uso para museus, bibliotecas, arquivos e instituições de ensino e de pesquisa —, o que ganhou mais destaque foi o tema direitos autorais e internet seguido do tema responsabilidades dos provedores de aplicações da internet: infrações aos direitos autorais.  

O presente artigo não pretende desmerecer outras tantas questões que indicam ser inevitável a reforma da legislação de Direito Autoral, como autoria das obras criadas por inteligência artificial, a necessidade de previsão para revisão dos contratos em razão da hipossuficiência dos autores principalmente em início de carreira, entre outros, mas, por razões didáticas, apresenta um recorte específico sobre o tema direitos autorais e internet.  

É curioso pensar que a internet foi criada em um contexto quase anárquico, onde a premissa era literalmente um "lugar" "sem espaço" para restrições ou regulações.  

Quem não se lembra do Napster, que, no início dos anos 2000, atingiu oito milhões de usuários conectados trocando um volume estimado de 20 milhões de músicas diariamente?

Com as primeiras plataformas de compartilhamento de arquivos, a exemplo do Napster, o próprio fluxo de divulgação das obras intelectuais foi alterado. O que antes era disponibilizado pelos editores, gravadoras ou pelos seus próprios autores, passou a ser disponibilizado pelos usuários.   

E assim, quando foi identificado o alto poder de disseminação de conteúdo por meio da internet sem autorização dos titulares de direitos autorais, surgiu, em contraposição àquele ambiente de máxima liberdade, o medo de pirataria e, consequentemente, foram criados mecanismos de repressão capazes de minimizar esse impacto.  

O próprio Marco Civil da Internet, datado de 2014, com o intuito de preservação da neutralidade da rede e da liberdade de expressão, determina em seu artigo 19 que os provedores de aplicações de internet somente serão responsabilizados civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomarem providências para torná-lo indisponível.    

E esse mesmo artigo 19, em seu parágrafo segundo, determina que sua aplicação para casos de infrações a direitos de autor ou a direitos conexos (direitos de intérpretes, produtores de fonograma e empresas de radiodifusão) dependem de previsão legal específica — o que não existe até o presente momento — e que tal legislação deverá respeitar a liberdade de expressão e demais garantias fundamentais.   

Atualmente, ao se depararem com a necessidade de aplicação da Lei de Direitos Autorais, nossos tribunais o fazem de fora da internet para dentro da internet. Exemplo disso é o julgamento em que o STF, em 2017, pacificou entendimento de ser devida a remuneração por direito autoral pela exibição de conteúdos via streaming com base no conceito de execução pública trazido pela Lei de Direitos Autorais, caracterizado pela disponibilização da obra com potencial de alcance a um número indeterminado de pessoas a qualquer momento. 

Em 3 de dezembro de 2020, a Agência Nacional do Cinema (Ancine) submeteu a consulta pública uma minuta de instrução normativa que cria mecanismo de recebimento e processamento de denúncias de violações a direitos autorais praticados no âmbito da internet via sites e/ou provedores de aplicativos da internet, bem como regula medidas de contenção dos danos eventualmente causados por aquela violação.  

O parágrafo 1º do artigo 1º da minuta traz o conceito de site ou aplicativo da internet praticante de violação ao direito autoral como sendo aquele que possua 250 ou mais obras audiovisuais não autorizadas ou possua dois terços do acervo composto por obras audiovisuais não autorizadas e que se dedique exclusivamente à disponibilização de obras audiovisuais protegidas por direitos autorais, sem prévia autorização dos seus titulares. 

A nossa atual Lei de Direitos Autorais prioriza três sujeitos, quais sejam, o criador da obra intelectual, a empresa/associação que a explora comercialmente e o usuário da obra intelectual, dando maior enfoque aos dois primeiros. No entanto, de uns anos para cá, viu-se a necessidade de conceder maior importância à figura do usuário com ânimo de encontrar soluções que considerem a democratização do acesso à cultura e à educação, sem causar danos aos direitos do autor.  

É evidente que as profundas transformações sofridas no âmbito do Direito Autoral com o advento da internet fizeram necessária a discussão da Lei de Direitos Autorais, mas é imprescindível, sobretudo, discutir os conceitos basilares da proteção do direito do autor para atender apropriadamente a demanda digital. 

Tanto mais porque os mecanismos de restrição outrora criados para repressão da disseminação de conteúdo pela internet com total liberdade há algum tempo já não são tão efetivos, pois muito agressivos para o acesso à educação e à cultura. Como se sabe, o repertório cultural é berço e estímulo à criação intelectual.  

Desse modo, em meio a tantas questões que devem ser consideradas para uma reforma justa e suficiente da atual Lei de Direitos Autorais, há de se buscar o equilíbrio entre a proteção do direito autoral e o acesso à educação e à cultura, há de se buscar um fino ajuste entre o combate à pirataria e a proteção dos direitos fundamentais dos usuários da internet, e, antes de tudo, há de se buscar o perfeito juízo entre a liberdade de expressão e livre manifestação de pensamento e os também fundamentais direitos à privacidade e à intimidade.

 

Fonte: Revista Consultor Jurídico, 23 de abril de 2021, 6h04

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