“A justiça gratuita não pode ser tratada como tema secundário: é necessário impugnar com estratégia e técnica, especialmente quando houver indícios de abuso”
A gratuidade da justiça é um instrumento essencial para garantir o acesso ao Judiciário, especialmente na esfera trabalhista. Prevista no art. 5º, inciso LXXIV da Constituição Federal, e regulamentada no art. 98 do CPC e art. 790, §3º e §4º da CLT, ela protege o trabalhador hipossuficiente por meio de simples declaração de insuficiência de recursos. No entanto, seu uso estratégico e abusivo vem crescendo, sobretudo diante da litigância predatória. O desafio atual é equilibrar o acesso à justiça com o combate à má-fé processual.
O julgamento do Incidente de Repetição de Demandas nº 277-83.2020.5.09.0084 reacendeu o debate sobre os limites da presunção de hipossuficiência. Embora o TST reafirme que a declaração do trabalhador possui presunção relativa, o ônus de afastá-la é elevado — o que, na prática, tem o condão de blindar o benefício em boa parte dos casos — mesmo diante de sinais concretos de abusos, o que gera desequilíbrio processual, principalmente para grandes empresas, alvos recorrentes de ações repetitivas.
O ministro Ives Gandra da Silva Martins Filho, em voto divergente no julgamento, sustentou que “não é possível invocar súmula superada por norma legal que disciplina a matéria em sentido diverso”, defendendo que, quando o trabalhador aufere renda superior a 40% do teto do RGPS, há necessidade de comprovação da insuficiência econômica.
Esse posicionamento representa uma interpretação mais técnica e objetiva do tema, e serve como importante referência para o fortalecimento de um sistema processual mais equilibrado, especialmente frente ao uso estratégico da gratuidade da justiça.
Nesse cenário, o papel do advogado empresarial torna-se ainda mais relevante. A justiça gratuita não pode ser tratada como tema secundário: é necessário impugnar com estratégia e técnica, especialmente quando houver indícios de abuso. Vínculos empregatícios recentes, padrão de vida elevado, outras ações judiciais simultâneas e dados extraídos de redes sociais podem fundamentar uma contestação robusta.
A produção de prova oral também é uma ferramenta útil para demonstrar contradições sobre a real condição financeira do autor. Testemunhos e depoimentos bem conduzidos podem enfraquecer a presunção de hipossuficiência e permitir o afastamento desse benefício.
Cabe à defesa construir um conjunto probatório mínimo e consistente para provocar a atuação mais crítica do Judiciário. É preciso lembrar que existem fundamentos legais e jurisprudenciais sólidos que amparam o entendimento de que a litigância de má-fé é incompatível com a concessão da justiça gratuita — como o art. 55 da Lei 9.099/95, o art. 87 do CDC e o próprio art. 5º, LXXIII da CF.
Tribunais já têm aplicado essa lógica: o TRT da 3ª Região, por exemplo, negou o benefício a autor que agiu de forma temerária, reconhecendo o desvirtuamento do instituto (Primeira Turma do TRT-3 – ROT: 0010518-58.2023.5.03.0091).
O CNJ também vem se posicionando contra a chamada judicialização predatória, especialmente quando se verifica o ajuizamento em massa de ações padronizadas, desprovidas de fundamento concreto. A Recomendação nº 127/2022 e o Ato Normativo 0006309-27.2024 reforçam que a instrumentalização abusiva do Judiciário fragiliza o sistema e compromete a boa-fé processual.
Insistir na concessão ou manutenção da justiça gratuita mesmo diante de condutas processuais abusivas representa não só um erro técnico, mas também um enfraquecimento institucional das medidas que vêm sendo desenvolvidas para conter tais práticas. A revogação do benefício, quando constatada a má-fé, torna-se uma resposta necessária — não apenas do ponto de vista legal, mas como forma de alinhar a atuação jurisdicional às diretrizes de integridade processual já encampadas pelo CNJ.
Frente a esse cenário de insegurança jurídica gerado pela sobreposição entre justiça gratuita e litigância de má-fé, os departamentos jurídicos empresariais precisam adotar posturas preventivas. É fundamental mapear autores e advogados reincidentes, investir em provas documentais e orais e desenvolver bases de dados que auxiliem na identificação de padrões abusivos. Mais do que reagir, é necessário atuar de forma propositiva, contribuindo para uma jurisprudência equilibrada que preserve o acesso à justiça sem tolerar seu uso distorcido.
Por Taís Tricai Advogada trabalhista do escritório Weiss Advocacia*